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2012

FÁBIO OLIVEIRA NUNES







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O fake na web arte: incursões miméticas na produção em arte e tecnologia na rede Internet (continuação)


Entretanto, embora bastante útil até aqui, somente a noção de modelo é ainda incipiente para abarcar com propriedade as relações sistêmicas que os trabalhos em rede muitas vezes estabelecem. Há situações que extrapolam a relação original-modelo, onde a essência do trabalho liga-se muito mais a uma trama dinâmica de elementos que geram uma camuflagem distribuída. Um exemplo neste sentido é Female Extension (1997), trabalho ciberfeminista de Cornelia Sollfrank constituído na criação de 200 nomes, nacionalidades, e-mails e números de telefone de supostas artistas da rede para a participação em um concurso de web arte. Além dos dados para a inscrição das artistas fakes, SollFrank utilizou um programa de computador para criar produções artísticas para cada uma delas. Apesar do fato de que mais de dois terços de participantes eram mulheres – já que das 280 inscrições, 200 eram criações da artista alemã – todos os três prêmios do concurso foram entregues a homens.

Outro exemplo é Assina: do Texto ao Contexto (2003) de Cícero Inácio da Silva  que criou cerca de 50 endereços na Internet em que disponibilizava textos produzidos ou tratados eletronicamente por algoritmos com nomes de autores conhecidos, como “Gilles Deleuze” ou “Platão”, seguindo os moldes de publicações acadêmicas. O artista lida com as questões de autenticidade e de autenticação na Internet: se encontramos na rede determinado texto apresentado como de um autor conhecido, como saberemos se é realmente dele já que não há um elemento eficaz que comprove a real autoria?  O artista então distribui pela web, entre “revistas científicas” e “institutos de pesquisas”, textos produzidos eletronicamente pelos robôs que levam o nome de autores conhecidos. Os textos são “assinados” pelos algoritmos que o geraram, instigando ao uso de pesquisadores desatentos.

Nestes casos, não temos exatamente um modelo a ser reproduzido, mas um complexo de elementos em interação onde as ações buscam camuflagem, possíveis de serem despercebidas enquanto propostas artísticas. É aqui então, que encontramos um ponto preciso e circunscrito: aproximamos a noção de mimetismo que abarca até aqui, com bastante propriedade, o universo desta discussão.

3. Mimetismo

Na biologia, mimetismo é uma relação ecológica em que indivíduos de uma determinada espécie buscam parecer-se com outros organismos, partes ou objetos do meio ambiente em troca de algum benefício, como proteção ou alimento. Chama-se por modelo, a espécie que possui alguma característica especial a ser copiada e denomina-se mimética, a espécie que, por sua vez, busca assemelhar-se ao modelo. Na natureza, estabelece-se então uma relação entre três elementos: o padrão (modelo), o imitante (espécie mimética) e o receptor do sinal, ou seja, o organismo que pode não encontrar distinção segura entre o padrão e o imitador (BARETT apud GEBAUER e WULF, 2004, p. 40). A adoção do conceito implica na compreensão de que há a instauração de um sistema – termo também originário da biologia, aplicável inclusive aos meios digitais. O termo hoje generalizado para definir conjuntos de partes e elementos interdependentes que formam uma unidade, surge com a Teoria Geral dos Sistemas de Ludwig von Bertalanffy. Esta teoria apresentada ao meio científico em 1947, publicada em 1955, compreendia o sistema como um complexo de elementos em interação e defendia o pensamento sistêmico como contextual (SANTOS e TELLES NETO, 2010).

No livro Mimese na Cultura os autores GEBAUER e WULF (2004) definem o mimetismo como uma mimese ecológica. Mimese, por sua vez, “é a designação geral para um mundo anterior, real ou somente postulado ou representado, que anuncia um amplo espectro de possíveis referências de um mundo próprio produzido pelo homem” (GEBAUER e WULF, 2004, p. 21). A idéia de mimese está vinculada ao conceito corrente de “imitação”. Essa compreensão é bastante difundida. Mas, os autores problematizam a questão inicialmente apontando que os processos miméticos não estão restritos às artes – sobretudo às intenções realistas das imagens – e, em seguida, apresentando seu papel fundamental à vida social em suas diferentes esferas.

Os autores aproximam o mimetismo com práticas comuns na vida do homem pré-histórico que, diante de uma natureza ainda tida como perigosa, assegurava sua sobrevivência colocando-se muitas vezes como morto, petrificando-se como pequenos animais também o fazem diante de predadores. Em um ambiente não dominado, o mimetismo torna-se uma das estratégias de sobrevivência do homem primitivo e um dos primeiros estágios de evolução do homem, “um aspecto da civilização que até hoje determina o homem” (GEBAUER e WULF, 2004, p. 41). Afinal, é observável que processos de imitação perpassam muitas áreas do agir, do interagir e do produzir do gênero humano.

Em diversos momentos, os autores reforçam o caráter relacional da mimese, trazendo os processos baseados neste princípio como fundamentais para o entendimento recíproco nas relações humanas: Com a ajuda das capacidades miméticas, percebe-se uma semelhança entre si e o outro, e experimenta-se a percepção de si do outro. Desta forma, chega-se a concordância do agir, das opiniões e dos sentimentos entre os homens. (GEBAUER e WULF, 2004, p.38).

Esta aproximação nos permite voltar às implicações nas artes, em especial, através da Estética Relacional de BOURRIAUD (2006), teoria baseada na análise de obras de arte produzidas em função das relações humanas que figuram, produzem ou suscitam, bem como, dialoga também com a idéia de Pós-produção (BOURRIAUD, 2009) que aponta que um viés da produção contemporânea dedica-se a reprogramar formas de sociabilidade. Tanto Gebauer e Wulf quanto Bourriaud em Pós-produção, nos fazem perceber que a ideologia de um “eu autônomo”, fechado em si e sua glorificação enquanto ego criativo perde espaço no domínio do pensamento contemporâneo, diante de uma orientação voltada ao outro e ao contexto a que pertence.

4.Outras discussões

O recorte das incursões miméticas em web arte nos permite traçar discussões a serem exploradas. Percebe-se, por exemplo, que esta produção se favorece da compreensão de um estado de midiatização, no momento em que os novos meios se estabelecem enquanto mediadores sociais de nossas experiências cotidianas (SODRÉ, 2006). Na verdade, os meios além de serem mediadores, podem também ser capazes de gerar reconhecimento, ao ponto de que a recorrência de um dado no ciberespaço basta para ele seja tomado por verdadeiro.Assim, quando se insere um elemento com os princípios factuais habitais – ainda que fictícios – torna-se difícil discernir sobre sua natureza verídica. Estes trabalhos trafegarão nos espaços de media, naturalmente não destinados à arte, o que propicia uma indistinção momentânea.

Ainda na lista de discussões que se abrem a partir deste tipo de produção, cabe citar obras que exploram os limites tênues entre realidade e imaginação diante de um contexto tecnológico. As tecnologias têm gradativamente ampliado os limites do possível, tornando concebível o que antes era apenas imaginado. Mas, a velocidade destas conquistas pode nos levar a acreditar em avanços muito maiores do que são: um exemplo neste sentido é o RTY Hospital (1997-2003) de Virgil Wong que teria criado o primeiro homem grávido da história. Em outro trabalho, chamado Clyven (2002), Wong apresentará um suposto rato transgênico com inteligência humana. O mesmo se aplica aos supostos drivers genitais “comercializados” pelo artista Alexei Shulgin em 1999 – itens eventualmente possíveis em um contexto tecnológico sempre tão proeminente.

Como pontua BOURRIAUD (2009, p. 86), “a imitação pode ser subversiva, muito mais do que certos discursos de oposição frontal que apenas encenam gestos de subversão”. Para o autor, ao analisar a produção em arte contemporânea, é necessário assumir ou pelo menos envergar a forma daquilo que se quer criticar. Bem, já situamos que esta produção é uma das vertentes críticas em arte e tecnologia. As incursões miméticas operam sistematicamente dentro de formas instituídas e estabelecem condições muito mais complexas do que a mera oposição às circunstâncias. Toda criação mimética é também uma incursão na metalinguagem do meio em questão, que assume uma aparência ao senso comum, ocultando seu ponto de ruptura. Por atuar no limite do improvável, tomar de assalto uma audiência crédula e questionar diretamente nosso poder individual de discernir sobre o “verdadeiro” e o “falso”, estas ações podem ser muito mais eficazes quando se trata de aproximar uma discussão crítica. Quando se descobre o caráter mimético de uma ação artística, há uma nova atenção em jogo. E é justamente a partir desta nova compreensão que nasce seu poder reflexivo.


BIBLIOGRAFIA


BEIGUELMAN, Giselle. Link-se: arte/mídia/política/cibercultura. São Paulo: Peirópolis, 2005.
BOURRIAUD, Nicolas. Estética relacional. Buenos Aires: Adriana Hidalgo Editora, 2006.
BOURRIAUD, Nicolas. Pós-produção. São Paulo: Martins, 2009.
BULHÕES, Maria Amélia. Web Arte e Poéticas do Território. Porto Alegre: Zouk, 2011.
GEBAUER, Günter; WULF, Christoph. Mimese na cultura: Agir social, rituais e jogos, produções estéticas. São Paulo: Annablume, 2004.
GOMES, Pedro Gilberto. A Filosofia e a ética da comunicação na midiatização da sociedade. São Leopoldo, RS: Unisinos, 2006.
GREENE, Rachel. Internet Art. World of Art. 1ª Ed. Nova Iorque: Thames e Hudson, 2004.
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MATTES, Eva; MATTES, Franco. 0100101110101101.ORG [Site de projetos da dupla de artistas]. Disponível em: http://0100101110101101.org/ . Acesso em 12 de fevereiro de 2012.
NUNES, Fabio Oliveira. CTRL+ART+DEL: Distúrbios em Arte e Tecnologia. São Paulo: Perspectiva, 2010.
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SANTOS, Nara Cristina; TELLES NETO, Henrique. O Processo sistêmico e interdisciplinar na arte: Entremeios II/SCIARTs. In: MARTINS, Maria Virginia Gordilho; HERNÁNDEZ, Maria Herminia Olivera. (Org.). Anais do 19º Encontro Nacional da ANPAP. Cachoeira, BA: ANPAP/EDUFBA, 2010. Disponível em: http://www.anpap.org.br/anais/2010/pdf/chtca/nara_cristina_santos.pdf . Acesso em 14 de fevereiro de 2012.
SODRÉ, Muniz. Eticidade, campo comunicacional e midiatização. In: MORAES, Dênis de (org.). Sociedade Midiatizada. Rio de Janeiro: Mauad, 2006. pp. 19-31.

Publicado originalmente em:
NUNES, Fabio Oliveira. O fake na web arte: incursões miméticas na produção em arte e tecnologia na rede Internet. In: 21º Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas - ANPAP, 2012, Rio de Janeiro. Vida e Ficção/Arte e fricção. Rio de Janeiro: ANPAP, 2012.

Texto integrante da pesquisa MIMETISMO: ESTRATÉGIA RELACIONAL EM ARTE E TENCOLOGIA, realizado sob apoio da FUNDAÇÃO DE AMPARO À PESQUISA DO ESTADO DE SÃO PAULO (FAPESP).

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