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2003

FÁBIO OLIVEIRA NUNES







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Arte transgênica via Internet

CONTINUAÇÃO

Certamente há outras leituras possíveis e certamente concomitantes com esta. Uma das mais correntes entre a imprensa que acompanhou o evento foi a idéia da vigilância, do aparato tecnológico em busca de cada ser humano e o chip como uma espécie de identidade eletrônica. Aliás, neste ano, o FDA (Food and Drugs Administration), órgão americano governamental responsável pela administração de remédios e alimentos, autorizou o uso de tecnologia semelhante à utilizada por Kac, para que qualquer pessoa possa armazenar em seus chips intracorpóreos, informações médicas, dados para casos de emergência e possa ainda, ser localizada via tecnologia por satélite, uma localização rápida em casos de seqüestro ou catástrofe.

Time Capsule suscita a justaposição dos paradigmas digital e biológico numa relação de memória como informação. Não tão centrado nas codificações como Gênesis, que veremos mais adiante, demonstra a memória genética e a memória binária coabitando o mesmo ser.

A troca – Um pouco antes de Time Capsule, acontecida em São Paulo na Casa das Rosas, outra performance na simbiose biológico-digital foi realizada: A-positive. Aqui, Kac doava seu sangue (na verdade, o oxigênio presente) a um robô que, por sua vez, oferecia açúcares para a corrente sanguínea.

A relação entre o digital e o biológico será evidenciada também em outros trabalhos de Kac como A-positive, realizada alguns meses antes da Time Capsule, onde existe uma relação simbiótica entre um robô – chamado por Kac como Biobot – e o ser humano. Neste trabalho, o artista (ou qualquer outra pessoa) doava sangue ao robô e este por sua vez, extraía oxigênio que acendia uma nanochama em seu mecanismo. Em troca, o robô doava dextrose ao corpo humano. Outro trabalho igualmente importante dentro deste percurso é Teleporting An Unknown State, de 1996, onde o artista coloca uma semente num espaço expositivo que semina e cresce somente com uma luz “teletransportada” pela rede Internet. Num espaço escuro, a semente recebe luz através de um projetor de vídeo que transmite imagens de céus, enviadas em tempo real, por internautas anônimos que apontam suas webcams para a luz do sol. Além da participação colaborativa e coletiva dos participantes e da subversão ao uso tradicional dos recursos de vídeo conferência, trata-se verdadeiramente de um teletransporte de partículas luminosas: fótons que nutrem a vida da planta.

4. 2 Arte transgênica

Destes trabalhos para o início da arte transgênica foi um curto período de tempo. Em 1998, surge o projeto GFP-K9, onde GFP é a abreviatura de Green Fluorescent Protein e K-9 é referencial ao adjetivo inglês canino (canine). Trata-se da inclusão num DNA de um embrião canino, uma proteína de medusa (Aequorea Victoria) que tornaria o cão fluorescente – emanando luz verde – ao contato com certas condições do ambiente. Para justificar sua criação, o artista estabelece o cão transgênico como uma próxima etapa na intervenção humana na existência canina: desde 15.000 anos atrás, o homem vem selecionando lobos portadores de características imaturas (processo evolutivo conhecido como neotenia) e mais modernamente através do controle de acasalamentos (MACHADO, 2001) para criar um “ideário canino”.

Luz da discórdia – Depois de Time Capsule, outra polêmica foi instaurada quando surgiu Alba, a coelhinha transgênica fluorescente. Após seu nascimento, Kac não conseguiu tê-la em seu convívio familiar conforme tinha inicialmente imaginado já que o laboratório de engenharia genética não liberou a saída da coelha, sob a alegação de que eles eram os responsáveis e “autores” deste ser vivo singular e ainda, que o artista não teria condições de cuidar do animal. Daí, Kac passa a fazer uma campanha para a “Alba livre”, que origina alguns trabalhos.


Mais tarde, Kac consegue realizar um trabalho equivalente ao GFP-K9: o GFP Bunny. Seguindo os mesmos procedimentos do projeto anterior, uma coelhinha albina torna-se fluorescente ao encontrar-se em um ambiente com uma determinada iluminação (precisa-se de um tipo de luz azul). Depois de nascida, o próximo passo seria a socialização da coelhinha: Kac pretendia levá-la para morar com sua família. Mas o laboratório francês, que o auxiliou na execução do projeto, simplesmente impediu sua retirada, alegando que o artista não teria condições de cuidar do animal transgênico. O artista por sua vez, vem desenvolvendo várias manifestações em prol da “Alba livre”, como forma de mobilizar a opinião pública. No seu site, inclusive, é possível enviar e acompanhar inúmeras mensagens em prol da libertação de Alba. De qualquer forma, uma considerável discussão – envolvendo não só a sociedade científica – foi formada diante desse fato.

Algumas considerações de Kac sobre a arte transgênica:

"Eu proponho o uso da engenharia genética para transferir genes sintéticos para microorganismos ou material genético de uma espécie para a outra com o objetivo de criar organismos vivos únicos e originais. A engenharia genética permite ao artista criar novas formas de vida animal e vegetal. A natureza deste tipo de arte se define não apenas pelo nascimento de uma nova planta ou animal, mas pela qualidade da relação que se estabelece entre o artista, o público e o organismo transgênico. Trabalhos de arte transgênica serão levados pelo público para casa para serem plantados no jardim ou criados como animais domésticos. Não pode existir arte transgênica sem um firme compromisso e responsabilidade com a nova forma de vida criada".(nota)

Na intenção de uma “arte viva”, a poética de Kac encontra-se próxima de artistas como George Gessert, um dos pioneiros na arte genética, que manipula geneticamente espécies de flores, dando origem a novas espécies oriundas de motivações estéticas. Mas, Gessert não possui o mesmo ímpeto tecnológico de Kac e trabalha apenas no nível biológico.

4.3 Gênesis

Uma segunda incursão do artista pela arte transgênica se deu em Gênesis, apresentado inicialmente em 1999, na Áustria, no evento Ars Eletronica e depois no ano 2000, no Itaú Cultural, em São Paulo.

O trabalho constitui-se em uma instalação que utiliza a rede como canal para interferências. A instalação Gênesis constitui-se em uma sala de paredes escuras com uma projeção de vídeo. Na primeira parede, uma transcrição de um pequeno trecho do antigo testamento onde é possível entender uma possível “autorização” divina para as intervenções da atual engenharia genética: “Deixe que o homem domine sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre todos os seres vivos que se movem na terra” (Gênesis 1, 28). Em outra parede, a transcrição do texto em inglês para o código Morse e em uma terceira, a tradução do código Morse para o código genético DNA. Cria-se aqui um gene sintético, advindo do texto bíblico. O crítico de arte Arlindo Machado, um dos curadores da exposição, descreve o funcionamento desta instalação:

"O gene sintético contendo o texto bíblico é, em seguida, transformado em plasmídeo (anel de DNA extracromossômico capaz de auto-replicação) e então introjetado numa bactéria E. coli, que o reproduzirá às próximas gerações. As bactérias contendo o gene Genesis apresentam a propriedade de fluorescência ciã (azul esverdeado) quando expostas à radiação ultravioleta e coabitam uma placa de Petri com outra colônia de bactérias, não transformadas pelo gene Genesis e dotadas da propriedade de fluorescência amarela quando submetidas à mesma radiação ultravioleta. À medida que as bactérias vão entrando em contato umas com as outras, um processo de transferência conjugal de plasmídeos pode acontecer, produzindo as seguintes alterações cromáticas: 1) se as bactérias ciãs doarem seu plasmídeo às amarelas (ou vice-versa), teremos o surgimento de bactérias verdes; 2) se nenhuma doação acontecer, as cores individuais serão preservadas; 3) se as bactérias perderem seus respectivos plasmídeos, elas se tornam ocres.

O processo de mutação cromática das bactérias pode se dar naturalmente ou pode ser também ativado por decisão humana, por meio da radiação ultravioleta, que acelera a taxa de mutação. No espaço da galeria onde ocorre a experiência, tanto os visitantes locais como os visitantes remotos (que participam do evento pela Web) podem ativar ou desativar a radiação ultravioleta interferindo, portanto, no processo de mutação e ao mesmo tempo possibilitando visualizar o estágio atual das combinações de ciã, amarelo, verde e ocre". (nota)

Parte integrante da dissertação de mestrado "Web Arte no Brasil: algumas interfaces e poéticas no universo da rede Internet", realizada sob a orientação do Prof. Dr. Gilbertto Prado, na UNICAMP.
© Fábio Oliveira Nunes: entre em contato.

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